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Talvez você não seja tão inteligente quanto pensa

Henrique Szklo

19/06/2018 04h05

iStock

Conhecimento sem reflexão não é inteligência nem sabedoria, é boa memória. Inteligência é saber fazer correlações originais sobre assuntos que todo mundo derrapa no senso comum. Sabedoria é a capacidade de ler o mundo com sensibilidade e bom senso, independentemente do conhecimento formal. Conhecimento puro é decoreba. Acumula sem sacudir, liquidificar. Se o tema for história, por exemplo, qual a data de um evento e o que aconteceu segundo os estudiosos não é relevante para leigos. Prefiro saber o significado do que aconteceu no contexto histórico, o que o provocou e quais foram seus desdobramentos. Bom, se eu me lembrar da data, não vou achar ruim. Mas realmente é secundário. Até porque existem sempre discussões acadêmicas sobre quando um evento histórico de fato aconteceu. Se quem entende não tem certeza, quem sou eu para ter?

Citar filósofos, recitar poesias de cor, conhecer todos os grandes músicos de jazz, ser uma biblioteca ambulante são capacidades realmente notáveis, é claro. Tenho um misto de admiração e inveja de quem demonstra profundo conhecimento sobre algum assunto. Mas, repito, não acho que seja necessariamente inteligência. Inteligente é aquele que, com conhecimento ou não, gosta de enriquecer seu repertório pessoal fazendo ilações, viajando e escorregando em várias maioneses. Acumular sem alquimizar, que graça que tem? Até porque daqui a pouco os computadores com inteligência artificial vão fazer a mesma coisa. E com muito mais competência.

Existe um padrão na sociedade que reverencia o cidadão de notório saber. Provavelmente é porque confundem saber com sabedoria. Ninguém presta atenção especial se este notório saber de fato se converte em soluções originais e de alto nível. Em geral, apenas reproduz ideias consagradas para justificar seus argumentos, mas não raro as interpreta de forma equivocada, temerosa e até tendenciosa, muitas vezes invertendo o significado original. Médicos, juízes, professores, empresários, diplomatas, filósofos, sacerdotes são supervalorizados apenas porque foram capazes de acumular: informações e/ou dinheiro. Inteligência? Não necessariamente.

Aqueles de notório saber desprezam quem gosta de oxigenar o cérebro

Mas eu entendo os memória-dependentes. Sério, entendo mesmo. Não é todo mundo que tem coragem para ir contra a correnteza. Os salmões sabem bem do que estou falando. Além da força que precisam fazer para nadar e pular, também correm o risco de acabar na barriga de malvados ursos famintos. Freud, por exemplo, recebeu torta na cara quando apresentou sua teoria da psicanálise para seus colegas. E eles foram cruéis e impiedosos com o homem do charuto. Disseram que a mãe dele não era séria e que o pai era corno. Agora eu pergunto: você sabe o nome destes caluniadores?

Eu, particularmente, admiro quem sabe ler a vida. Pode até escorregar na norma culta, não importa. O que me encanta é a fagulha, a capacidade de amalgamar lé com cré. Quem propõe novas visões contrapondo o que todo mundo concorda sem questionar. Além de serem os verdadeiros inteligentes e sábios, são também os mais criativos. Mentes abertas e inquietas, capazes de subverter ideias e conceitos que deixam arrepiados os fanáticos torcedores do time que está ganhando. Aqueles que acreditam que não devemos mudar o que está "dando certo". Que a subversão é um crime lesa cultura.

O problema das ideias originais é que ninguém consegue comprová-las até sua aplicação na prática. O conhecimento consagrado, memorizado pelas pessoas, já está chancelado como correto, por isso as pessoas se sentem confortáveis em aceita-los de bom grado. Mesmo sem fazer a mínima ideia do que tratam. Chavões e lugares-comuns são a preferência internacional. Não existe ofensa maior para o ser humano médio do que questionar suas crenças. Crime passível de morte, em muitos casos.

Tem gente que prefere um conhecimento papai-mamãe. Eu prefiro um bacanal de ideias

O criativo é, antes de tudo, um chato. Quer saber o porquê de tudo, sugerir alternativas para coisas que estão funcionando tão bem desde que a Terra era plana, desafiar o senso comum, as opções "seguras" e "garantidas". Ninguém gosta mesmo de quem inventa novos jeitos de tirar todo mundo da zona de conforto. Não tem mais o que fazer do que atormentar os outros?

Todo mundo sabe que a zona de conforto, que eu chamo de zona de familiaridade, é perniciosa para a vida e para o trabalho. Todo mundo diz que vai sair e cobra que os outros também saiam. Mas na hora do vamo-vê, tem sempre uma coisa muito complexa que impede de finalmente começar. Você pode chamar de preguiça, mas a verdade é que é medo mesmo. Sair da zona de conforto é que nem regime: sempre se começa na segunda-feira. Se não chover.

Bem, primeiro essa é uma posição no mínimo equivocada, já que a vida, a natureza, deus, gaia, x-tudo – não importa o nome que você queira dar – dão infinitas mostras de que a vida não é estática e sim um processo em eterno movimento. Tudo se move. A dinâmica é a dinâmica do universo. Até a pedra acomodada há milênios no fundo do mar tem em sua essência um movimento ininterrupto: o de seus átomos e moléculas. Então porque diabos alguém acredita que é possível (e positivo) cristalizar uma situação mesmo que de alguma forma ela nos favoreça. Não, é o movimento que está em consonância com a vida. Ou seja, por mais que nosso conhecimento tenha sido reconhecido e aprovado por longo tempo, não quer dizer que ele viverá para sempre. Eterna, só nossa insatisfação. E pur si muove.

Novas circunstâncias exigem novas reflexões

Os ditos cultos também defendem seu conhecimento com neurônios e dentes em nome de alguém que eles consideram muito importante: eles mesmos. Sacrificaram tanto em suas vidas para adquirir aquele monte de informação, amontoada em um depósito gigantesco dentro de suas cabeças, que não ficam nada contentes em ter de fazer uma faxina e jogar algumas caixas fora para dar lugar ao novo. Eles não passam de acumuladores obsessivos compulsivos. Mas não os condeno totalmente. Até defendo sua existência e resistência. É importante ter alguém nas trincheiras defendendo o conhecimento formal até a morte, porque senão nenhum saber seria produzido ou resistiria ao tempo. Os radicais têm esta função. Proclamam o final dos tempos caso as pessoas comecem a pensar de forma diversa da que eles consideram certa e, portanto, inquestionável. De fato, o terrorismo é um elemento fundamental para o desenvolvimento e manutenção de qualquer cultura.

E o que faz aquele que tem péssima memória? Que conhece bem filosofia mas nunca se lembra de quem disse o quê? Não garanto, mas é possível que o indivíduo desmemoriado tenha grandes chances de ser uma pessoa mais criativa que as outras. E é fácil de explicar porquê. Toda vez que ele precisa lembrar-se de alguma coisa e não consegue, acaba inventando um treco diferente para pôr no lugar. E esse comportamento reincidente acaba por criar um padrão cerebral de busca constante de soluções originais e imediatas para sair de enrascadas. O cérebro aprende que é uma boa maneira de lidar com as coisas. Ou, no caso, a única. Naturalmente, este tipo de gente é mais despojada e relaxada com relação ao seu nível cultural. Não que elas desprezem o conhecimento e não os cultive. É que se não forem flexíveis consigo mesmas vão ficar se culpando, se condenando, e isso não serve pra nada. A consciência de suas capacidades mentais diminui a frustração. E diminui a possibilidade de sair pela rua com uma AR15 atirando a esmo só porque não se lembra do nome do ministro da educação no governo Médici ou a escalação completa do Araxá Esporte Clube de 1959. A falta de memória na verdade faz com eles apelem mais para o raciocínio. Param para pensar 7 minutos e buscam novas maneiras de se ver as coisas. Não têm medo do diferente, do arriscado. De quebrar padrões. Para os esquecidos vocacionais, o conhecimento estático não é um valor em si, mas uma ponte para a reflexão e criação de novos caminhos e horizontes.

Se alguém tiver um argumento irrefutável que contradiga o que estou dizendo, prometo que vou refletir e, se concluir que tem razão, não hesitarei em guardar minha submetralhadora Mini UZI co2, semiautomática, calibre 4,5mm e mudar meu ponto de vista. É claro que vou ficar desconfortável. Não existe cura para a zona de desconforto. Porém é preciso nos conhecer como máquinas biológicas e saber que o desconforto é apenas quebra de padrão. Não é um julgamento de valor. Nosso cérebro analisa apenas se a informação faz parte de nosso sistema de crenças ou não. Se for padrão, está na zona de conforto. Se não for, é sofrência pura. Simples assim.

Então, meu amigo, minha amiga, procure conhecimento, sempre. Mas não se esqueça de refletir, questionar sempre, tentar construir uma opinião que seja sua e não emprestada de alguém. Que você não se imponha o simples acúmulo de informações mas que dê match entre elas, se preocupando em entender melhor a vida e, principalmente, você mesmo. Mas o que eu mais quero mesmo é que você se esqueça de tudo o que acabou de ler. Hein?

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Sobre o autor

Henrique Szklo exerceu durante 18 anos a profissão de publicitário na área de criação, como redator e diretor de criação. Hoje é estudioso da criatividade e do comportamento humano, escritor, professor, designer gráfico, palestrante e palpiteiro digital. Desenvolveu sua própria teoria, a NeuroCriatividade Subversiva, e seu próprio método, o Dezpertamento Criativo. É coordenador do curso de criatividade da Escola Panamericana de Arte e sócio da Escola Nômade para Mentes Criativas. É colaborador também do site ProXXIma, tem 8 livros publicados e é palmeirense.

Sobre o blog

Assuntos do momento observados com bom humor pela ótica da criatividade e do comportamento humano. Sempre com um viés provocador e fugindo do senso comum. E que São Magaiver nos proteja!

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